passar a manhã acordado ao teu lado e os teus olhos a
denunciar a cegueira da razão. olho para o tecto; a gravata pendurada no
candeeiro do séc. xix e o pescoço ainda incólume. estudo a perspectiva com os
teus dedos sobre o meu peito enegrecido do frio. espalho o espaço das palavras
num sorriso nervoso de quem não quer saber a verdade. lá fora há um silêncio só
meu que não te posso oferecer; penduro a camisa no roupeiro enquanto observo
pelo espelho o movimento ténue da tua voz sobre os lençóis: “estou cansada do
amor, da virtude de ser feliz”. não te dizia nada e olhava para os sapatos demasiado
sujos para ir trabalhar; limpo o coração com uma escova velha e doem-me os pés,
os dedos frios e lentos de tantas manhãs acordado, tantos lençóis demasiado
curtos para esconder o desespero de um corpo cansado, dos olhos fechados, o
pescoço cortado pela gravata de seda italiana, o candeeiro de mármore que cai
do tecto como uma folha de outubro. o que resta da noite são garrafas vazias,
roupa para arrumar e uma solidão a dois. a tua voz partida “já não me lembro de
nenhuma verdade sobre o teu rosto”, e eu sozinho na sala à procura de um copo
lavado; os olhos pregados ao quadro em que o amor, ainda. em que o meu rosto,
ainda. em que a noite, as tuas mãos e o meu peito a dançar sob o candeeiro
inflamado. o frio, o teu corpo inerte como se falasse e fosse dançando noite
dentro. só uma luz sobre ti no palco vazio.
a cama vazia e o pescoço dorido, os botões de punho de família a apertar demasiado a manhã fértil. o fim de uma canção com um poema submerso.
a cama vazia e o pescoço dorido, os botões de punho de família a apertar demasiado a manhã fértil. o fim de uma canção com um poema submerso.