domingo, 30 de março de 2014

estância boreal



as pernas adormecidas
e o corpo deitado para
o lado de dentro.
escolhemos as cartas
do meio de um baralho
antigo e lançamos os
dados, cortamos  os dedos;
o som das baratas a percorrer
o soalho em peregrinação
aflita. escolhes-me uma carta
rasgada; esvazias-me o coração
enquanto durmo e sais pela
janela ainda semi-nua; semi-
apaixonada.
escondes os bilhetes; os beijos;
as palavras numa caixa de
papel e recortas um nome
complexo para a vida
inerte. as pernas adormecidas
do lado de dentro
depois do sexo - como sempre
- e as tuas palavras escondidas
entre o soalho e a peregrinação
do sorriso ténue. as baratas
no vértice do sopro.
desces a avenida com os dedos
ainda doridos e a noite inteira
ao peito a rasgar
os silêncios
entre as árvores e a sombra
dos carros que passam
a assobiar a melodia
gasta do teu corpo.  

sexta-feira, 28 de março de 2014

bebedouro



há dias em que o sorriso;
os olhos abertos de alguém
que não existe se expandem
sobre o teu corpo e é o abraço
possível.

a caixa de cartão rasgada é uma
espécie de cama; as costas;
o sangue das costas a
cobrir o chão onde escorrem
os sonhos
saltar do passeio com a criança
que sobra do corpo cansado e cair
triste no chão com os joelhos
esfolados
os vidros; estilhaços; espalhados
pelas pernas que suportam, ainda,
o corpo ligeiro de um homem sem
alma.
peço uma moeda para comprar
outro sonho, outra cama;
talvez um cartão mais resistente
que não ensope com a chuva;
com as lágrimas. mordo devagar
as irregularidades físicas de
estar vivo; de tentar o movimento
na esperança que a vida,
as costas ensanguentadas
sobre a calçada
sejam o carinho que carrega
os pés descalços para os beirados
e as mãos cansadas que se apoiam
no ventre quando
os olhos de alguém
tão bonito como tu
caem sobre o peito e rasgam
o externo na trajectória do beijo. 

o rio transborda
e os velhos cortam
o pescoço a duas ou três
galinhas.
 ainda correm; sonham
no espaço que sobra
entre a cabeça e o
coração.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Colmeia vazia

gostava de saber o teu nome
a tua voz perdida numa morada
qualquer e eu sozinho para sempre
numa cozinha antiga com um tacho
ainda ao lume - ainda as entranhas
do meu pai, dos meus avós a cozinhar
em lume brando porque o tempo
se encarrega de fechar os armários
ainda com corpos, restos de corpos
a decompor a madeira - caruncho -
o meu coração com buracos de onde
verte o sangue; a voz, a cascata em
que o teu nome, o teu sorriso que
nunca,
as tuas mãos a recortar o peito onde
antes o teu olhar adormecido;
uma espécie de felicidade.