a dor de amar para sempre não é
nada de especial. é uma faca invisível que vai dividindo os braços e o peito em
pedaços mais pequenos e os distribui por drogarias quase a falir; normalmente
acaba esquecida numa prateleira com pouco uso, num canto do armazém onde se
arrumam os detergentes, as vassouras e o coração. o tempo passa e já não se tem
o hábito de conferir stocks no final do ano; há tão poucos clientes que deixa
de valer a pena constatar a inutilidade das drogarias e do amor. o homem de
barba mal aparada, de camisa rasgada e calças por lavar - já gordo e cansado de
sorrir - começa a responder mal às senhoras que ainda insistem em comprar sabão
azul e branco para adornar as lágrimas num alguidar de barro lascado. quando
está sozinho liga a televisão e ouve o silêncio inteiro contido na estática;
procura o tabaco e fuma a demorada concepção dos dias. as tábuas mais velhas
vão rangendo lá atrás onde foi ficando o que resta do coração e dos ratos mortos
em armadilhas artesanais. pedaços de queijo putrefactos e um cinzeiro
encardido, com os olhos demasiados pretos, demasiado quietos. com o tempo
vamo-nos lembrando que talvez um dia, ao acaso, estejamos à procura de um
elástico de avião e nos cruzemos com um bocadinho de alma que ainda verte sobre
o chão desguarnecido. talvez. mas hoje é preferível o cigarro imóvel sobre o
corpo inadequado. um dedo partido na mão esquerda de um guitarrista – esta
consequência fértil de estar vivo.
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