sábado, 27 de dezembro de 2014

Fascículo de um abraço



passar a manhã acordado ao teu lado e os teus olhos a denunciar a cegueira da razão. olho para o tecto; a gravata pendurada no candeeiro do séc. xix e o pescoço ainda incólume. estudo a perspectiva com os teus dedos sobre o meu peito enegrecido do frio. espalho o espaço das palavras num sorriso nervoso de quem não quer saber a verdade. lá fora há um silêncio só meu que não te posso oferecer; penduro a camisa no roupeiro enquanto observo pelo espelho o movimento ténue da tua voz sobre os lençóis: “estou cansada do amor, da virtude de ser feliz”. não te dizia nada e olhava para os sapatos demasiado sujos para ir trabalhar; limpo o coração com uma escova velha e doem-me os pés, os dedos frios e lentos de tantas manhãs acordado, tantos lençóis demasiado curtos para esconder o desespero de um corpo cansado, dos olhos fechados, o pescoço cortado pela gravata de seda italiana, o candeeiro de mármore que cai do tecto como uma folha de outubro. o que resta da noite são garrafas vazias, roupa para arrumar e uma solidão a dois. a tua voz partida “já não me lembro de nenhuma verdade sobre o teu rosto”, e eu sozinho na sala à procura de um copo lavado; os olhos pregados ao quadro em que o amor, ainda. em que o meu rosto, ainda. em que a noite, as tuas mãos e o meu peito a dançar sob o candeeiro inflamado. o frio, o teu corpo inerte como se falasse e fosse dançando noite dentro. só uma luz sobre ti no palco vazio.
a cama vazia e o pescoço dorido, os botões de punho de família a apertar demasiado a manhã fértil. o fim de uma canção com um poema submerso.

Sem comentários:

Enviar um comentário